terça-feira, 15 de abril de 2008

(Com)Vivendo com HIV

A última edição (final de janeiro) da revista americana The Advocate traz uma interessante matéria sobre a vida com HIV entre os gays americanos. A matéria inclui uma reportagem que acompanha o dia-a-dia, por três semanas, de três homens com sorologia positiva e um comovente artigo escrito por um editor da revista, que participou como voluntário da recém-interrompida pesquisa da HIV Vaccine Trials Network International para o desenvolvimento de uma vacina para o HIV.Embora toda a matéria seja muito valiosa ao tentar refletir sobre as várias questões envolvidas com o tema, das estatísticas alarmantes sobre a contaminação entre os gays americanos às conseqüências de mais uma tentativa fracassada de uma vacina (nesse caso, a vacina, não apenas não foi capaz de evitar o contágio, como também, em alguns casos, aumentou as chances de contaminação), o que mais me tocou foram os depoimentos do três indivíduos acompanhados pela revista. Sabemos que as histórias reais de pessoas comuns causam mais impacto do que qualquer discurso racional, pois elas nos permitem identificações e experiências emocionais mais profundas e, portanto, mais eficazes na mudança de atitudes. Na matéria da Advocate, as histórias confirmam a tese da revista (e de todos seriamente envolvidos com o tema) de que o HIV, embora não signifique mais uma sentença de morte, de forma alguma se tornou algo banal. As histórias descritas revelam as dificuldades, os medos e as angústias vivenciadas por aqueles que viram suas vidas se transformar a partir do diagnóstico. Questões práticas como para quem e quando contar, as complicações dos regimes, os efeitos colaterais dos medicamentos e a freqüente rejeição por parte de possíveis parceiros amorosos, aparecem lado a lado com questões existenciais mais complexas.E é ai que a matéria me pegou, pois é com essas questões existenciais mais profundas que lido cotidianamente na minha prática clínica e sobre as quais nada vejo ou leio na mídia voltada para os gays. O discurso cientificista que ouvimos dos especialistas da área de saúde privilegia, como não poderia deixar de ser, os aspectos “objetivos” da “doença”. Ou seja, a prevenção, os índices de carga viral e de CD4, os medicamentos e os cuidados com a saúde em geral. A “subjetividade” porém fica restrita aos consultórios dos psicoterapeutas e aos poucos grupos de apoio existentes no Brasil. A vivência do diagnóstico do HIV é evidentemente particular e reflete obviamente características mais abrangentes da psicologia do indivíduo, mas é também muito influenciada por fatores sociais e culturais. Cada vez mais invisível, em função dos medicamentos atuais, a “doença”, deixou de ter uma “cara”, mas nem por isso perdeu completamente o estigma associado às doenças sexualmente transmitidas. De forma mais velada talvez do que em outros tempos, permanece no imaginário coletivo como uma doença evitável, um mal decorrente de comportamentos transgressores em relação a uma sexualidade “saudável”. Daí os sentimentos freqüentes de culpa, vergonha e desalento que acompanham muitos dos meus pacientes positivos. Além de ter de lidar com todas as dificuldades inerentes à situação, eles se vêem sobrecarregados psiquicamente com imagens profundamente negativas sobre si mesmos. A ansiedade diante dos exames necessários a cada três meses, o medo da rejeição e do abandono, as fantasias catastróficas sobre o futuro incerto e o desconforto de ser visto na fila para os medicamentos (e, portanto, identificado) soma-se à culpa e a vergonha. Muitos escolhem viver a situação em total isolamento, sem contar mesmo para amigos ou parentes próximos. Angustiados e perdidos, não conseguem enxergar um caminho fora da depressão profunda ou da negação compulsiva. Sair do armário sobre o HIV é, para esses indivíduos, uma tarefa acima de suas forças. Há, por outro lado, aqueles que, de uma forma ou de outra, conseguem ativar seus recursos, psicológicos, espirituais e sociais e, com isso, aprendem a conviver com a situação a partir de uma perspectiva menos sombria. A minha experiência indica que esses indivíduos são normalmente os que puderam atribuir algum significado a experiência da “doença”. Esse significado pode tanto advir de uma compreensão mais profunda da natureza humana diante da imponderabilidade da vida (visão mais filosófica), como de uma conexão com uma dimensão transpessoal, de caráter espiritual. É comum ouvir desses pacientes relatos comoventes sobre as “coisas boas” que a consciência decorrente do processo que vivenciam a partir do diagnóstico do HIV lhes trouxe. Histórias de morte (de uma atitude, de uma crença, de um padrão de relacionamento) e de renascimento (de uma nova consciência, de um jeito diferente de encarar a vida) tão caras a nossa alma. Pena que essas histórias raramente deixem os consultórios e, portanto, cumpram seu papel de nos aproximar emocionalmente das pessoas reais escondidas nas estatísticas oficiais, nos relatórios médicos e nas campanhas de prevenção. E, pior, completamente invisíveis na nossa mídia.


Klecius Borges

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